sexta-feira, 6 de novembro de 2009

O cego e o livro do cego...

Há um bom tempo atrás começamos a nos mexer (eu e minha esposa), no sentido de facilitar um pouco a geração de material de leitura e de cultura para nossa filha (que é deficiente visual - cega). Esse é um desafio que encaramos há mais de 14 anos e que está ainda meio longe de ser vencido.

Como parte dessa peregrinação, um dos contatos que fizemos foi com o Ministério da Cultura, no sentido de solicitar a regulamentação de um dispositivo da Lei de Direitos Autorais (LDA), que diz que os livros e demais itens protegidos por direito autoral devem ser liberados para reprodução em meio que seja acessível ao cego. Isso parece ser simples, mas não é não. Não é suficiente apenas "imprimir em braille"...

Há dois meses eu dei uma entrevista para a publicação do Desafios da Conjuntura, do Observatório da Educação. Transcrevo abaixo a entrevista, para que possamos avançar no tema e, quem sabe, melhorar o acesso dessa população à Cultura. A publicação completa pode ser acessada em http://www.observatoriodaeducacao.org.br/images/pdfs/dc27final.pdf .

Quem tiver sugestões e comentários, pode enviar...

----------------------------------------------------------------------------

Entrevista: Marrey Luiz Peres Jr.

Editoras não cumprem a lei, negando fornecimento de material digitalizado para pessoas com deficiência visual

O acesso das pessoas com deficiên­cia visual a obras escritas é previsto na atual legislação de direitos autorais. O dispositivo, no entanto, não é cumprido por muitas editoras, tampouco sua exis­tência informada à sociedade em geral.

Marrey Luiz Peres Jr, pai de uma jovem de 22 anos com deficiência visual, vem acompanhando o processo de reformulação da lei de direitos au­torais, e teme o retrocesso, em função “da paranoia do mercado editorial”, em relação às possibilidades tecnológicas de acesso à informação.

Observatório da Educação - Como a legislação de direitos autorais influencia o cotidiano das pessoas cegas?
Marrey - Existem duas abordagens para inserir o cego no ambiente educacional, profissional, na sociedade em geral. Uma delas é a atitude segregacionista, e a outra é a de criar mecanismos para sua integração.
O que atrapalha a vida de uma pessoa deficiente são, geralmente, as dificuldades de acesso. Para o deficiente físico, a dificuldade de acesso nos meios de locomoção, edifícios, portas que não consegue entrar etc. Para o deficiente visual, o grande problema é o acesso à cultura. Boa parte da educação e da ativi­dade cultural é visual. E a leitura, que é transmissão da linguagem oral, através de linguagem escrita, também se apóia na visão.
Então, uma das coisas que a gente precisa trabalhar para inserir o portador de deficiência visual num ambiente edu­cacional, por exemplo, é a transcrição para o Braille ou para qualquer outro meio que para ele seja acessível.

OE – Enfrentou esses problemas durante a vida escolar da sua filha?
Marrey - Bastante. Qualquer pessoa que vá a uma livraria e disser “tenho um filho cego e quero esse livro”, não vai ter o material. Eles dizem: para conseguir, tem que entrar em contato com a instituição A, B ou C... Entra em contato e existe um tempo para a produção do material, se é que esse material tem condições de ser produzido. Então, enquanto todo mundo na classe, no começo do ano, vai à livraria, com­pra um livro e começa a estudar, a pessoa cega só começa a estudar a mesma matéria depois de três ou quatro meses, e se tudo andar direito.
Como tivemos esse tipo de problema, nos aparelhamos. Então, pudemos descobrir o que havia de recursos. O custo desse recurso ainda é exorbitante. Temos uma impressora em Braille que, na época em que compramos, custou o preço de um carro popular, R$ 14 mil.
Depois disso, tivemos o seguinte problema: temos com­putador, scanner, etc. Mas, todos os livros, principalmente os didáticos, são muito visuais, não só na leitura do texto, mas também na apresentação de fotografias, gráficos, recursos visuais etc. Então, descobrimos que um livro, para ser bem transcrito para um deficiente visual, necessita de um certo grau de adaptação. Minha esposa, principalmente, começou a fazer esse trabalho. Primeiro a gente escaneava o livro inteiro e pegava o texto e, então, colocávamos a descrição das foto­grafias e recursos gráficos, mapas.
Mas, conforme se evolui na escola, o volume de in­formação e conteúdo aumenta geometricamente. Chegou uma hora em que não dávamos mais conta de escanear o material e adaptá-lo.
Descobrimos, então, uma exceção na lei de direitos auto­rais que dizia que o deficiente visual teria direito a ter acesso ao material de literatura, sujeito a direito autoral, em forma acessível, o que é confundido, pela maioria das pessoas, com o formato Braille. Não necessariamente um livro precisa estar em formato Braille; é possível, por exemplo, ter o livro em formato digital, ou “txt.”, e esse texto ser lido por um proces­sador de voz no computador.
Nessa época, minha filha já não estava lendo só em Braille. Ela já tinha um microcomputador com um software gratuito, fornecido pela Universidade Federal do Rio de Janei­ro (UFRJ), que é um sistema completo para cegos, e permite, dentre outras coisas, que o computador leia o texto.
Braille é muito importante, por fornecer ao cego o acesso à ortografia. Mas do ponto de vista do conteúdo, boa parte pode ser resolvida com literatura falada, sintetizador de voz. O que precisa é ter claro qual o processo de fornecimento, por exemplo, de um CD, com o texto do livro digitalizado, coisa que toda editora tem.
É óbvio que essa exceção da lei pode trazer efeitos maléficos. Não é porque a pessoa é deficiente que é “Santa”. Entendo o lado da editora de não querer distribuir o CD com a obra literária, pois há risco de propagação pirata. Mas vi um dispositivo no Canadá, que é uma carteira de identificação, na qual a pessoa cega é registrada, recebe o material, se respon­sabiliza por ele e, caso seja disponibilizado a outra pessoa, responde criminalmente por violação de direito autoral.
Indagamos ao Ministério da Cultura porque é tão difícil o cumprimento da lei. Por que, nós, pais, temos de sair em peregrinação às editoras tentando convencê-las a cumprir a lei e fornecer o material que nossos filhos deficientes visuais necessitam? Muitas editoras fornecem, outras, não, e falam: vá para o Ministério Público se quiser. Então, entramos em contato com o Ministério da Cultura para sugerir, ou pressio­nar, para que esse aspecto da lei fosse regulamentado e as editoras soubessem como proceder.

OE – Como a reformulação da lei de direitos autorais poderia contribuir com o desafio de inclusão das pessoas com deficiência visual?
Marrey - Do ponto de vista de usuário, de pai de pessoa com deficiência, sinto que a lei atual possui um dispositivo que abre uma exceção com relação ao cumprimento do direito autoral. Diz textualmente que deve ser garantido ao deficiente visual o acesso ao conteúdo, seja em Braille ou em qualquer meio acessível. Desse ponto de vista, a lei já está perfeita.
O que não está claro é como isso deve ser feito. Já ouvi falarem em cotas para impressão em Braille, por exemplo. Isso é um atentado. Não tem gente para ler tudo isso. O con­sumo de literatura pela população já é baixo, pelo cego menor ainda. Não tem sentido imprimir tudo. Em segundo lugar, para garantir acesso ao conteúdo não é necessário imprimir em Braille, o texto pode ser lido no computador. O que pode­ria ser aperfeiçoado na lei é o dever das editoras de disponibi­lizar o conteúdo e quais as formas para que isso seja feito.
Um cuidado que devemos ter é não permitir que a lei retroceda. Que, em virtude de uma paranoia generalizada de que está tudo indo para a internet, que o mercado fonográfico vai submergir e o do livro desaparecer, sejam suprimidas as exceções da lei.
Acho que isso não vai acontecer, até porque o Brasil é signatário de acordos internacionais de acessibilidade para o deficiente visual e espero que esses acordos não sejam descumpridos por uma paranoia do mercado editorial. Mesmo porque o número de pessoas cegas não chega a 2% da popu­lação, o que, acho, não deve assustar ninguém em termos de verba de direitos autorais recolhidos.

OE - O acesso à produção cultural para pessoas com defici­ência visual varia de acordo com a área do conhecimento ou tipo de livro?
Marrey - Não sei se existe uma gradação, mas nossa experiência nos diz que o livro didático é um pouco mais complicado que o livro normal de literatura. A literatura em geral tem mais letra e menos figura. Já o didático não, ele tem muitas figuras, recursos visuais. Toda instituição que produz livro didático em Braille faz a transcrição, mas, além disso, deveria ter a adaptação dos recursos gráficos, como figuras e mapas. Mas isso ninguém faz.

Nenhum comentário: